Com os reveses por que a situação no Afeganistão tem passado ultimamente, a NATO corre um risco sério de não conseguir sucesso na sua missão de estabilização do país. É quanto basta aos talibãs para considerarem que a sua acção está a ter êxito; permite-lhes “eternizar” a situação até ao “esgotamento” dos que mais contribuem para tentar resolver a situação sem verem um progresso correspondente ao esforço feito.
Resta saber se o que está a falhar se deve apenas a falta de empenho ou incapacidade de atribuir as forças e meios que os responsáveis no terreno têm pedido. Há muitas análises que apontam as culpas para outras circunstâncias; vão mesmo ao ponto de considerar que nem sequer faz grande sentido continuar a atribuir mais recursos militares e financeiros se paralelamente não se tiver em conta que a solução do problema tem outras dimensões, tão ou mais importantes do que a ajuda económico-militar.
Rury Stwart, um diplomata veterano e perfeitamente conhecedor da situação, a viver em Cabul, não tem dúvidas em “pôr o dedo na ferida” ao dizer duas verdades simples que explicam a origem dos problemas que o Afeganistão enfrenta: nenhum país pode funcionar sem um governo com autoridade e credível; não é possível vencer uma guerra de contra-insurreição sem controlo de fronteiras.
Barret Rubin que publicou recentemente um artigo sobre o Afeganistão da revista Foreign Affairs tem uma posição semelhante: diz que um eventual reforço militar não resolverá nada («only a stopgap measure») se não se tratar, em primeiro lugar, das questões “Governo afegão” e “Paquistão”.
A primeira questão está em grande parte nas mãos do Presidente Hamid Karzai, sobre quem caem muitas críticas, sobretudo pela sua incapacidade em resolver os problemas de corrupção e ineficácia em que vive o seu governo e o sistema judicial e pela falta de progresso na reconciliação nacional. Não é realista esperar que num curto prazo de tempo o Afeganistão se reforme à luz do modelo de uma democracia ocidental; o país vai continuar por bastante tempo a manter-se longe desse objectivo, vivendo sob códigos incompreensíveis para o Ocidente. Não pode é sobreviver no vácuo de poder em que continua mergulhado e que tem permitido à insurreição e às actividades criminosas um vasto campo de manobra e a quase total impunidade.
A outra questão – a do controlo das fronteiras – está essencialmente nas mãos do Paquistão, mas não é, ao contrário do que se pensa geralmente, apenas um problema operacional de controlo militar da fronteira; é também um problema político que tem a ver com a forma como o país encara a defesa dos seus interesses de segurança perante a Índia.
Em termos operacionais, o Paquistão tem a apresentar como prova do seu esforço de controlo das áreas tribais do noroeste, 1087 baixas militares, resultantes de confrontos locais na sua grande maioria; uma estatística sem dúvida impressionante. Mas não faltam referências paralelas à cumplicidade tácita dos Serviços de Informação Militares (ISI) com os talibãs e à instrumentalização que sempre fizeram das suas actividades, quer para manter sob controlo a situação no Afeganistão, quer na questão de Caxemira.
O Exército, que tem sido o garante da unidade nacional, e em especial os ISI, olham para a situação em função daquilo que consideram ser os interesses primários do país; o primeiro e mais decisivo é salvaguardar a sua segurança perante o Índia, o que implica evitar no Afeganistão um regime amigo de Nova Deli. Os talibãs podem ser mais uma carta a jogar, se necessário, para ajudar a garantir esse objectivo; tudo o mais, inclusive as promessas de apoio ao combate ao terrorismo vem sempre depois e nunca de forma que possa alienar a disponibilidade desse instrumento.
As conhecidas simpatias do Presidente Karzai para com a Índia e a recente visita do ministro da Defesa afegão a Nova Deli para conversações sobre o possível apoio da Índia ao treino das Forças Armadas afegãs apenas aumenta a desconfiança paquistanesa sobre o possível papel da Índia. É aliás neste contexto que deve ser analisado o ataque terrorista que a Embaixada da Índia em Cabul sofreu recentemente e sobre o qual os serviços secretos americanos alegam dispor de evidências de envolvimento de quadros do ISI.
Por algum tempo, o Presidente Musharraf tentou apostar num entendimento com os líderes tribais do Waziristão que se comprometeram a parar a infiltração de talibãs no Afeganistão; esta orientação foi continuada pelo general Ashfaq Kayani, o seu sucessor á frente do Exército, e pelo governo do PPP, do primeiro-ministro Jalili, que reforçou essa linha. Foi feito um novo acordo com os líderes tribais, prevendo a colaboração destes para a cessação das actividades dos militantes islamitas radicais e para a expulsão dos estrangeiros e, pela parte do Governo, a substituição do Exército pelo Corpo de Guardas de Fronteira. No entanto, esta orientação não só não resultou – por incumprimento do compromisso assumido pelos líderes - como agravou a situação: o afastamento do Exército criou um vazio de poder de que os talibãs, radicais islamitas e a própria al Qaeda se têm aproveitado para reconstituir a sua rede de santuários.
Como se isto não chegasse, veio um contributo importante do Iraque para agravar a situação; a al Qaeda tendo perdido o apoio que usufruía da minoria sunita até há cerca de um ano e reconhecendo que a hostilidade dos xiitas não lhe permitiria tirar partido da concentração de esforço que aí fazia tem vindo a trocar o Iraque pelo norte do Paquistão, onde, por falta de controlo do Estado, se pode movimentar com facilidade e conseguir os apoios de que precisa. Fez o movimento clássico de uma organização de terrorismo internacional, procurando o elo mais fraco no actual sistema de estados.
Em resultado desta nova realidade, o Paquistão está no caminho de se tornar naquilo que era o Afeganistão antes da invasão americana em 2002, o principal centro de terrorismo internacional; o Afeganistão já é a sua principal vítima.
Tornou-se ainda mais claro que não será o reforço dos efectivos militares no Afeganistão que vai resolver o problema, ainda que vá ajudar a contê-lo com maior eficácia. É também discutível se o que interessa é a “re-americanização” do conflito, como defendia recentemente o general Loureiro dos Santos (Jornal Público, 4 Julho) ou se, pelo contrário, não será melhor pôr mais esforço em dar à guerra uma face afegã, sendo este último o caminho que me parece melhor.
Em qualquer caso, o problema é mais político do que nunca e situa-se, na sua origem, como se viu atrás, fora do Afeganistão. Aliás, dificilmente terá solução se não for encarado num contexto regional tendo em conta que só uma normalização do relacionamento Paquistão/Índia poderá levar o primeiro a prescindir da “carta islâmica” com que tem procurado um maior equilíbrio de forças.