Um dia percebi que quase toda a gente tinha uma "terra". Um sítio de onde tinham vindo ou para onde iam. Como então não se usava a fotografia paisagística (mostrava-se a casa do pai, da mãe ou do namorado, mas não as vistas da casa), a "terra" era um sítio imaginável e mesmo passível de ser inventado.
A Alexandrina, por exemplo, vinha de Pinhanços. Certos dias, quando eu entrava na cozinha, oferecia-me requeijão que o sobrinho trouxera da terra. Outros vinham do pé do mar. Outros de sítios tão perdidos que quase não tinham geografia.
Eu era de Lisboa, o que significava não ter "terra" mas apenas um bairro e uma rua. Não podia imaginar ou inventar coisa nenhuma acerca das minhas origens, porque tudo estava à vista. Um dia, a minha mãe foi-me buscar à escola primária da D. Beatriz e anunciou-me que tínhamos uma casa nova. A casa era velhíssima e estava dentro de uma quinta grande que em nada se comparava ao meu conceito de espaço, sempre ajardinado. Podia-se ver o céu de uma ponta à outra e, quando escurecia, acendiam-se candeeiros a petróleo.
Naquela paisagem de muitos verdes preservada pelo esforço triste e solitário de Águeda Maria Maia e pela energia e autoridade da prima Dores, a minha tia plantou 1001 árvores vindas de cinco continentes para fazer um parque absurdo no meio da diversidade geometricamente ordenada das terras de regadio. No caminho para o tanque das rãs, fez-se uma pérgula coberta de rosas de Santa Teresinha, do gosto da minha avó, e um banco de madeira para descansar nas tardes de calor. Em todos os cantos da casa havia peças de faiança do Bordalo e um cheiro persistente a maçã raineta.
Os meninos da terra ensinaram-me a cortar as canas, a construir um moinho de água, a beber água-pé, a apanhar rãs, a distinguir os pássaros, os insectos e os répteis. No domingo íamos à missa e na igreja, pobre e vazia, a minha tia mostrava-me a pia baptismal - excelente exemplar românico - e eu ficava absorta na contemplação de São Sebastião, o corpo contorcido de um modo anatomicamente impossível sob o impacto de muitas setas. Os homens ficavam cá fora, fumando e falando em surdina, e as mulheres ajeitavam as crianças descalças nas pregas dos xailes pretos.
Nesse tempo em que a agricultura não era ainda esta ciência exacta de todos os prejuízos, a pobreza era evidente e por vezes mesmo intolerável. Durante a noite, em muitas noites daquela década, partia esta ou aquela família a caminho de França. No dia seguinte dizia-se: "O Agostinho fugiu com a família!". As filhas do Agostinho eram gémeas e tinham tranças loiras enroladas sobre as orelhas e eu ia ver a casa, agora vazia, deixada ao abandono, mais as terras e os poucos tarecos que escaparam à penhora.
Um dia, os emigrantes voltaram e construíram grandes casas tipo "château". As fábricas abriram nos arredores da cidade próxima, as estradas rasgaram-se, a agricultura, sempre a mesma desgraça, racionalizou-se. Vieram os jardineiros de Versalhes e fizeram jardins com buxos e canteiros. Na taberna nova há uma máquina de "bicas" e ao lado um minimercado. A igreja, pintada de fresco, está cheia de homens e mulheres que cantam e rezam em conjunto. Só a pia baptismal e o São Sebastião permanecem nos seus sítios. Toda a gente trabalha ou estuda. A agricultura transformou-se num mal necessário analisado à luz dos fundos comunitários. Toda a gente se queixa, mas já ninguém quer partir.
As novas gerações vieram ocupar a casa velha e a quinta. Do tanque das rãs fez-se uma piscina, da arrecadação grande uma sala de bilhar e 1001 baloiços nas árvores em roda da casa. Detrás dos caniçais e de entre os limoeiros surgem cabeças mais ou menos loiras, diabruras reinventadas, fugas e retornos. Do terraço, no azul- -tinta das noites luarentas continuo a ver, intocado, o perfil do eucalipto australiano, amplamente centenário e, quando começa o calor, as sardinheiras precipitam-se, uma e outra vez sobre os muros ocres num desatar de cor. Quando escurece, ainda há uma mão pequena que agarra a minha para uma caçada aos pirilampos.