Noite de Verão. Acordo sufocado pelo calor. A porta está aberta e saio, vou debruçar-me na varanda. Na maioria das casas há luz, um homem e uma mulher fumam sentados na pequena ponte sobre o canal, na ponta dum muro um gato olha pensativo para a água. De vez em quando ouve-se ao longe o ruído dos comboios de mercadorias que passam na linha Amsterdam-Utrecht.
Éramos jovens, fáceis de entusiasmar, os filmes de Ingmar Bergman pareciam-nos o sumo do que se realizava na arte cinematográfica. Ao fim de cada sessão corríamos ao café a discutir, a analisar, a incensar o trabalho do realizador. Mesmo no corriqueiro ou no acidental dos seus filmes adivinhávamos intenções geniais. Quanto mais estáticas as cenas, mais elas nos pareciam prenhes de significado, e o nosso apreço não tinha limites quando um personagem, de costas para os espectadores, ficava minutos imóvel a olhar para um horizonte vazio.
Gradualmente, porém, fui-me perguntando se uma tão incondicional admiração não era igual à dos súbditos que aplaudiam a passagem do rei nu. A vinda ao de cima do meu senso crítico resultou num apreço mais moderado pelo cineasta sueco, e num frequente franzir de sobrolho quando os meus amigos insistiam em me explicar o simbolismo hermético de certas cenas.
Assim, não sei em que filme, no momento em que um personagem moribundo olhava fixamente o céu, ouvia-se ao longe o ruído dum comboio e, muito ténue, o silvo de uma locomotiva a vapor. Eles afirmavam que se tratava de uma subtileza sonora, usada por Bergman para assinalar o momento em que a alma se despegava do corpo. Eu retorquia que na filmagem da cena em exteriores, a gravação do ruído tinha sido acidental. Eles que não, eu que sim, até que de tão excitados tínhamos passado dos gritos aos insultos.
O gato saltou do muro, o homem e a mulher continuam a fumar sentados na ponte. A aragem virou e o matraquear dos comboios na linha Amsterdam-Utrecht tornou-se quase indistinto na distância. É pena que as locomotivas tenham deixado de apitar.