O país acordou medroso: o Presidente da República vai falar, o assunto é muito importante, secreto e decisivo para Portugal. Perto dos telejornais, as senhoras ajeitaram-se nos sofás, deram um toque no peitilho de rendas amaciadas constantemente pelas mãos a proteger o coração. Algumas beberricaram infusões calmantes e uma ou outra recorreu a relaxantes químicos. Houve ainda quem comprimisse junto ao peito o velho crucifixo das aflições. Os cavalheiros prepararam digestivos (àquela hora), desfilaram os dedos pelas barbas e bigodes, ajeitaram as pantufas e aliviaram o cinto do robe sobre o umbigo. Até as crianças foram mandadas para a cama mais cedo na expectativa de não ficarem traumatizadas pela abordagem importante, secreta e decisiva para Portugal. Neste entretanto, os mais excitados disfarçavam os nervos com variados dichotes, tipo também vai querer invadir o Iraque, declara, de certeza, que Portugal tem direito à água de Marte, dirá que o continente quer mais dinheiro dos EUA pela Base das Lajes, exigirá o seu nome numa das fumarolas submarinas ao lado da de Mário Soares e outras idiotices do género, tentando fazer graça sobre o que não tem graça nenhuma.
Exactamente 45 segundos depois de exibir a assustadora máscara carrancuda, Cavaco diz boa noite e toda a gente suspirou de alívio: quem vai falar de um tema importante, secreto e decisivo para Portugal, não diz boa noite a ninguém.
Disse a minha opinião num programa da SIC/Notícias: Cavaco fez uma declaração despropositada, inoportuna e perigosa; foi divisionista, porquanto mais não fez do que acicatar a opinião pública portuguesa contra a Região Autónoma dos Açores. Uma simples comunicação à Assembleia da República resolveria a sua inquietação com elevação e sem causar terror. Por outro lado, lamenta-se a manifesta ignorância de certos comentadores e telespectadores sobre a substância do Estatuto, que tanto irritou Cavaco, bem como se repudia a ignomínia de muitos que acusam os Açores de pesarem no Orçamento do Estado. Tentem saber o verdadeiro contributo dos Açores a Portugal, não só pela sua posição estratégica, mas também pela presença dos Estados Unidos na Base das Lajes, o que reforça a certeza de que Portugal só é aceite nos grandes areópagos internacionais por via da situação privilegiada dos Açores, da qual têm resultado avultados dinheiros da NATO, dos EUA, etc. Informem-se bem e deixem-se de falsos juízos de valor.
Depois da desilusão patenteada pela maioria das pessoas, não faltaram os agentes da contra-informação a especularem e a darem razão ao medalhado a oiro pela Câmara de Ponta Delgada: os Açores estão a querer a independência (oxalá quisessem), querem roubar poderes ao Presidente da República, se somos nós que pagamos aquilo, devem fazer o que mandamos e outras asneiras proferidas por autênticos bananas pobres de espírito. Outros mais finos, disseram que nunca teriam votado aquele Estatuto (Luís Filipe Meneses); nim (Manuela Ferreira Leite) e vamos ver primeiro para dizer depois (Vitalino Canas); a culpa foi do PS/Açores, que votou contra a nossas propostas (Costa Neves, depois do PSD/A ter aprovado tudo o que saiu das Assembleias dos Açores e da República).
As excepções foram a de um comentador da SIC, que alertou para a injustiça da atitude do Presidente (deles) e do Prof. Adriano Moreira, que deu razões para tanta fúria: os Açores têm uma plataforma marítima, uma enorme Zona Económica Exclusiva, uma posição estratégica atlântica e uma proximidade a outras potências (EUA, Brasil e África) indispensáveis a Portugal.
Uma questão de soberania nacional, Professor? interroga o jornalista.
Manifestamente responde o interlocutor com toda a naturalidade.
P. S. O Tribunal Constitucional anunciou que o objecto da comunicação de Cavaco não foi submetido àquela instância. Má fé do Presidente da República ou o querer assumir o protagonismo de também massacrar a colónia? Já agora, e segundo o TC, não podemos legislar sobre tabaco e preço de combustíveis. É a Autonomia a bater no fundo